Por Adriel Santana*
O mundo está cheio de dados. Neste século em especial a coleta deles se tornou quase uma obsessão, tanto por parte de entidades governamentais – vide os programas de vigilância em massa – como pelas companhias, com as chamadas big techs tendo destaque especial. Uma frase que se tornou clichê enquanto justificativa para esse fenômeno é que “dados são o novo petróleo”.
O outro lado dessa tendência, que inicialmente tinha os Estados como alvo principal e mais recentemente se ampliou para as empresas, é o medo justificado sobre a captura indiscriminada e armazenamento desses dados (na maioria das vezes pessoais) e suas destinações pouco transparentes. Houve assim nos últimos anos uma reação das sociedades, que acabou por, dentre outras coisas, caminhar pela implementação de legislações protetivas aos cidadãos e usuários/consumidores, tais como, no caso do Brasil, o Marco Civil da Internet e recentemente a LGPD.
Afinal, qual o objetivo pela qual o poder público e o setor privado buscam tanto tê-los?
Essas mudanças legislativas estão impondo agora um desafio, nessa nova realidade onde obter e extrair dados se tornará teoricamente mais difícil, que consiste não em sobre quantos deles se conseguem capturar – de forma consensual ou não -, mas sobre quais deles são efetivamente relevantes e necessários para os fins almejados. Repensar nossa relação com os dados públicos e privados – e em última instância é isso que se busca – demanda, desta forma, rever as próprias premissas onde os atos de coleta estão assentados.
É preciso reconhecer, para responder essa pergunta, que dados são, por si só, imprestáveis; eles não dizem nada isoladamente para quem os detém. Sequencias de 8, 11 e 16 numerais, a princípio, não possuem significado implícito e utilizável. Contudo, se é descoberto que a sequência de 8 números equivale a de uma data de nascimento (XX/XX/XXXX), que a de 11 é um CPF (XXX.XXX.XXX-XX) e que a de 16 é a de um cartão de crédito (XXXX XXXX XXXX XXXX), de repente esses dados se convertem em informação, pois adquirem significado, um sentido lógico atribuído.
Porém, informação também não é o bastante e com certeza não é o objetivo final. Há informação demais circulando, abertamente ou não, relativas as pessoas naturais e jurídicas, lugares e organizações, fatos e coisas, sobre o (e no) setor público e privado, nos chamados “poços de dados” que existem neste mundo online. Essa abundância de fontes gera até a impressão de que a sociedade estaria se afogando em informação: são tantas fontes diferentes atualmente, que temos dificuldade para processá-las e, consequentemente, determinar quais delas possuem as caracterizas essenciais da Confiabilidade, Utilidade e Relevância.
O verdadeiro “salto”, portanto, o grande objetivo consiste em correlacionar algumas dessas informações, que na maioria das vezes não estão devidamente estruturadas ou – pior ainda – encontram-se cobertas de “ruídos” que confundem e distraem do essencial (e, portanto, precisam ser analisadas e filtradas), extraindo desse processo, enfim, o que se denomina historicamente de Inteligência.
A Inteligência
Por muito tempo inteligência foi um conceito designado e esperado apenas de organizações ligadas, direta e indiretamente, aos Estados. Agências governamentais (secretas ou não) possuem a obrigação institucional de coletar – legalmente ou ilegalmente, em âmbito nacional e internacional – dados de diversas fontes, convertê-los em informações com as características chaves já citadas, para então finalmente extrair delas insights. Tudo isso para permitir aos poderosos que possam realizar tomadas de decisões estratégicas fundamentadas.
Entretanto, hoje em dia, a produção de inteligência é uma possibilidade para milhões de pessoas, bastando na maior parte dos casos ter um simples acesso à internet, um conhecimento mínimo sobre navegação na rede e bastante curiosidade e perspicácia para processar os dados e informações que obtém. Apenas como exemplo, recentemente jornais e pesquisadores online, usando imagens de satélite do Google e postagens em redes sociais feitas por cidadãos e soldados, conseguiram monitorar o avanço de tropas russas no território ucraniano antes mesmo disso ser oficialmente confirmado por agências governamentais, algo inimaginável há algumas décadas.
Há atualmente uma gama enorme de atividades correlacionadas a produção de inteligência – Human Intelligence (HUMINT), Open Source Intelligence (OSINT), Signals Intelligence (SIGINT), Geospatial Intelligence (GEOINT), Imagery Intelligence (IMINT), Measurement and Signature Intelligence (MASINT), incluindo suas subdivisões que surgem a medida que a sociedade evolui (como é o caso da SOCMINT, inteligência obtida através de informações e dados coletados em mídias e redes sociais) – e, de forma paralela, há inúmeras fontes e ferramentas gratuitas, abertas ou públicas disponíveis a todos para sua produção.
Sejam órgãos do governo como entidades privadas, o processo de redesenhar a relação com os dados perpassa por uma compreensão clara de sua finalidade primordial: produzir inteligência que permita tomar decisões devidamente embasadas. Não se trata assim de ter acesso a muitos dados ou se afogar em inúmeras informações – que em sua grande maioria carece de confiabilidade, utilidade e/ou relevância -, mas possuir um procedimento eficaz de conversão deste material bruto, detectando e tratando aquela parte com real potencial valorativo, em conhecimento útil e aplicável aos fins almejáveis.
Da mesma maneira que Estados contam com agências de espionagem responsáveis por lhes subsidiar com inteligência para monitorar riscos ao país e se proteger de ameaças internas e externas, empresas também precisam contar com mão de obra qualificada para orientar assim suas ações cotidianas (KYC, KYE e KYS) e estratégicas (aquisições, análise de mercado, disputas e litígios). As companhias precisam, portanto, entender e começar a demandar uma verdadeira inteligência corporativa, que lhe provenha regularmente, através das melhores ferramentas e técnicas disponíveis, de conhecimento bem embasado, de inteligência afinal.
* Adriel Santana, gerente de inteligência corporativa na Aliant
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