“Contrate caráter, treine habilidades”: o ponto de convergência entre Compliance e RH 
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“Contrate caráter, treine habilidades”: o ponto de convergência entre Compliance e RH 

Data da publicação: 17/09/2024
Por Luara A. Stollmeier

A frase “Contrate caráter, treine habilidades” é uma máxima amplamente utilizada no mundo dos negócios e recursos humanos, e frequentemente atribuída a Jack Welch, ex-CEO da General Electric (GE). Ela reflete a crença de que o caráter de uma pessoa — seus valores, ética e integridade — é mais importante no processo de contratação do que suas habilidades técnicas, que podem ser ensinadas ou desenvolvidas ao longo do tempo. 

Seguindo essa linha, caráter abrange aspectos diversos e essenciais para um ambiente de trabalho saudável e produtivo. Pressupõe-se que uma pessoa com “caráter forte” tende a estar alinhada à cultura e aos valores da empresa, contribuindo para um cenário de confiança e respeito. Habilidades técnicas, por outro lado, poderiam ser adquiridas ou aprimoradas por meio de treinamentos e workshops. Assim, conclui-se que a pessoa provavelmente estará disposta a aprender e se adaptar às novas demandas da função, enquanto uma mudança em seu comportamento se faz mais improvável. 

A ideia pode ser vista como simplista em contextos mais complexos, e nos leva a pensar no ponto de convergência entre compliance e RH: a cultura organizacional. Embora promova uma mensagem poderosa e amplamente aceita, ela também pode ser problematizada sob diferentes perspectivas: Primeiro, quais aspectos apontam o alinhamento entre caráter do candidato e valores da companhia? Depois, quais são os métodos de avaliação que indicam essa sinergia, dando suporte para a decisão de contratação? E, enfim, após tanto tempo desenvolvendo um olhar mais profundo sobre o funcionamento de culturas organizacionais, será que essa máxima ainda faz sentido? 

Valores organizacionais: teoria ou prática? 

A questão sobre valores organizacionais assume formas distintas e dinâmicas, como identificaram Jenkins e Bourne, em 2013, ao mapear pelo menos quatro delas: expostas, atribuídas, compartilhadas e aspiracionais. Quer dizer que tais valores operam em mais de uma dimensão, assumindo uma multiplicidade de comunicações e engajando diferentemente os stakeholders.  

É o que aponta uma pesquisa com 689 empresas, das quais 73% apresentavam uma lista entre três e sete valores. Esses eram muito mais diversos do que se esperava: foram identificados 62 valores com pelo menos uma menção – e nenhum deles foi universal.  “Integridade” foi o valor mais citado (65% das companhias), seguido por “colaboração” (53%), “foco no cliente” (48%) e “respeito” (35%).  

Há uma variação entre setores que é bastante interessante: todas as empresas de construção e da indústria de saúde incluíram “integridade” entre os seus valores principais, enquanto apenas 20% das empresas relacionadas a serviços de internet fizeram o mesmo. Logo, de acordo com essa pesquisa, integridade não pode ser considerada um valor declaradamente universal das companhias, embora se mantenha como o mais frequente. 

Após elencar os valores declarados oficialmente, a pesquisa testou uma correlação com as reviews registradas no site Glassdoor pelos colaboradores, a fim de entender se esses valores eram vividos e declarados também pelas pessoas. A conclusão não impressiona: a correlação entre os valores proferidos oficialmente pelas companhias e a percepção dos colaboradores foi zero ou baixíssima.  

Considerando a caracterização das amostras, entre os motivos possíveis para tal resultado está a falta de parâmetros de comportamento em situações do mundo real, enfrentadas de fato pelos colaboradores. Aparentemente, além de existir uma implicação subjetiva na definição do que é “respeito” e “integridade”, por exemplo, a abstração dos termos torna nebulosa qual é a expectativa de comportamento adequado.  

Outra questão é a generalidade dos valores declarados e a sua fraca relação com a identidade ou a história da empresa: “responsabilidade” é um termo que enfatiza diferentes aspectos se declarado como valor de uma fintech ou de uma mineradora, por ex. A singularidade do negócio precisa ser considerada para que a tradução do valor a um comportamento aconteça concretamente.  

Como exemplo de comportamento esperado e como capacidade de traduzir os valores da empresa em comportamentos, a atuação dos líderes tem um impacto determinante – a contratação nesses cargos é estratégica para a sustentação da cultura organizacional. Entretanto, de acordo com os dados de canais de denúncias analisados pela Aliant, 1 a cada 3 denúncias sobre líderes e gestores em 2023 foi procedente, consequentemente, a política de consequências precisa ser aplicada em lideranças em favor de manter a coerência do discurso organizacional. 

Caso a aplicação das políticas de consequências não seja clara, surge outra questão: esses valores realmente importam? Por quê? 

Avaliando comportamentos ou personalidade? 

Entendendo o desafio e a importância de concretizar valores organizacionais em comportamentos desejáveis, vem o segundo ponto: como identificar essa sinergia, dando suporte para a decisão de contratação? 

Existem diversas abordagens para analisar o horizonte de acontecimentos da vida de uma pessoa: analisando o comportamento passado, é muito comum a aplicação de um background check, um procedimento essencial para entender as atuações anteriores do candidato. Ele permite mapear o envolvimento em questões judiciais e ocorrências que impactam a sua reputação, além da validação de informações sobre a formação e atuação profissional, entre outras. 

A análise de perfil ético do candidato, por sua vez, permite compreender quais são os motivadores da tomada de decisão atuais de uma pessoa, frente a dilemas e situações realistas. Uma maneira de conduzi-la é através de entrevistas abertas, que possibilitam explorar livremente todos os indicadores de um panorama de risco: gratificações, confidencialidade, condutas desrespeitosas e violentas etc.  

Compreender o discernimento de uma pessoa a respeito de normas e políticas implica um nível de análise muito diferente daquele proporcionado por um teste de personalidade. Isso fica claro quando consideramos que, apesar dos processos seletivos normalmente incluírem testes desse tipo, ainda é mapeado pela Association of Certified Fraud Examiners que 85% dos profissionais que cometeram fraudes tinham comportamentos de risco passíveis de identificação.  

Os testes de personalidade, como o MBTI (Myers-Briggs Type Indicator) ou o Big Five, são utilizados para medir traços que podem refletir a compatibilidade do candidato com uma função, com a dinâmica de uma equipe e suas lideranças. Por exemplo, um candidato cuja pontuação seja alta em “extroversão” pode se encaixar melhor em uma função que envolva trabalho colaborativo e comunicação aberta. Elementos da personalidade podem estar fortemente correlacionados com a eficácia no trabalho. 

De maneira muito diferente, o teste de integridade consiste em um questionário projetado para entender o comportamento do candidato frente a situações de dilema ético, como questões de conformidade com normas da empresa e o impacto de pressões externas sobre a flexibilização de suas escolhas. A metodologia mapeia indicadores complexos, apontando propensões e tolerâncias frente a determinadas situações. Por exemplo, uma pessoa que apresenta um risco alto sobre assédio moral pode ter sido frequentemente exposta a ambientes em que estava naturalizado esse tipo de comportamento. Não quer dizer que ela vá cometer uma situação de assédio, mas que há uma tolerância e possível propensão. Os testes de integridade são ótimos recursos para indicar a necessidade de treinamentos específicos, que ensinem a identificar e evitar desvios de comportamento. 

Já as entrevistas de integridade são abordagens aprofundadas que possibilitam uma visão mais completa sobre o comportamento individual. Normalmente, são feitas por consultores especializados e formados em psicologia, que sabem conduzir a conversa para verificação dos riscos mapeados em conjunto com a empresa. Além disso, são utilizadas técnicas de detecção de mentiras para avaliar a transparência das respostas, o que permite identificar afirmações de pouca confiabilidade. 

Esse tipo de entrevista envolve perguntas comportamentais e dilemas éticos que levam o candidato a demonstrar como lidaria com situações delicadas. Diferente dos testes de integridade, tais indagações podem ser específicas e pautadas sobre uma pesquisa prévia a respeito das experiências anteriores dessa pessoa ou de situações que a empresa precisa evitar. É indicada principalmente para cargos estratégicos, de maior responsabilidade. 

Os métodos de avaliação são ferramentas cruciais para garantir que os candidatos não apenas possuam as competências técnicas necessárias, mas também compartilhem os valores essenciais da empresa com os comportamentos adequados. Cada método – testes de personalidade, testes e entrevistas de integridade – desempenha um papel importante na redução de riscos de contratação e no fortalecimento da cultura organizacional. Ao combinar essas técnicas, as empresas podem tomar decisões mais informadas e contratar profissionais que contribuirão para um ambiente de trabalho mais coeso, ético e alinhado aos objetivos da organização. 

No contexto da cultura organizacional, “caráter” é o que costumava ser? 

O caráter não é algo fixo e imutável. Muitas pessoas agem de maneira diferente em situações distintas. Um colaborador pode ser completamente ético e íntegro em um cenário, mas pode tomar decisões questionáveis em outro contexto, dependendo de fatores como pressão financeira, clima organizacional ou incentivos inadequados. Essa flexibilidade do caráter humano questiona a ideia de que uma pessoa sempre agirá conforme seus princípios – e que seus princípios permanecerão sempre os mesmos. 

Tendo em vista que a identificação de valores corporativos é muito particular e que se expressa de formas distintas e dinâmicas, entendemos que a questão de “contratar caráter” é parte de uma decisão estratégica informada, que sustenta mudanças e adaptações em cultura organizacional viva, em constante movimento, e consciente de si.  

A cultura organizacional não apenas se beneficia de pessoas que consolidam e promovem seus alicerces: um survey conduzido sobre comportamento ético concluiu que companhias que desenvolvem uma cultura de integridade têm cinco vezes mais probabilidade de experimentar melhorias em termos de comportamento dos seus funcionários. Se a empresa promove uma cultura de ética e compliance, os indivíduos são mais propensos a seguir esses padrões. No entanto, se a cultura incentiva a competição desleal ou o ganho a qualquer custo, até mesmo pessoas com fortes princípios podem agir de maneira inconsistente com seus valores. 

A ideia de que o caráter pode ser treinado e modificado dentro de uma cultura organizacional tem sido explorada por vários pesquisadores nas áreas de psicologia, comportamento organizacional e ética empresarial. As empresas têm o poder de influenciar o comportamento e o desenvolvimento ético dos funcionários através de lideranças, políticas organizacionais e uma cultura que promova seus valores coerentemente. Nesse sentido, as entrevistas de integridade podem orientar quais são os treinamentos necessários para alinhar o comportamento esperado.  

Interessado em saber mais sobre como as entrevistas de integridade podem transformar o processo de contratação da sua empresa? Fale conosco e descubra como implementar práticas que garantirão não apenas uma equipe qualificada, mas também alinhada aos valores da companhia. 

Luara A. Stollmeier

Luara A. Stollmeier

Consultora e Pesquisadora da Aliant. Doutora pela UFMG, possui uma década de experiência em Pesquisa e Gestão de projetos, possui habilidades na coordenação de pesquisas, análise de dados e comunicação de temas complexos.

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