Em janeiro de 2014, entrou em vigor a legislação criada para responsabilizar companhias que cometessem atos de corrupção contra a administração pública: a Lei Anticorrupção, oficialmente Lei nº 12.846/2013. Com a introdução da responsabilidade objetiva das empresas por atos de corrupção, a legislação tornou-se um marco no combate à corrupção no Brasil e no fortalecimento dos programas de integridade corporativa. Mas, ao analisar os desdobramentos práticos e legais dessa legislação para programas de integridade, podemos ser verdadeiramente otimistas em relação ao futuro?
Lei Anticorrupção: o que é, principais temas e contexto de aprovação
Sob uma crescente pressão popular e a necessidade de reposicionar o Brasil no cenário global, o Estado brasileiro promulgou a Lei n° 12.846/2013 em um momento de mudanças políticas e sociais significativas.
Do ponto de vista internacional, o país enfrentava exigências por novos instrumentos normativos vinculados aos compromissos assumidos globalmente. A adesão à Convenção da OCDE contra o Suborno (1997) e à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003) reforçava as tendências globais impulsionadas por legislações de referência, como o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), dos Estados Unidos, e o UK Bribery Act, do Reino Unido. A ausência de uma legislação semelhante colocava o Brasil em desvantagem em termos de comércio internacional e reputação.
No contexto interno, as manifestações populares de junho de 2013, inicialmente focadas em pautas de mobilidade urbana e tarifa zero, evoluíram para um clamor por transparência, combate à má gestão pública e maior participação popular nas decisões governamentais. A aprovação da Lei Anticorrupção naquele ano é amplamente vista como uma resposta a essas demandas sociais, ao mesmo tempo em que buscava regular as relações entre o setor público e o privado.
Entre os principais pontos da legislação estão a punição para atos de corrupção, fraudes e manipulação de agentes ou processos licitatórios públicos; a responsabilidade objetiva, civil e administrativa, das empresas por atos cometidos por seus diretores, colaboradores ou terceiros que atuem em seu nome; e sanções severas, como multas de até 20% do faturamento bruto anual, perda de bens e, em casos extremos, a dissolução da empresa.
Além de introduzir essas responsabilidades, a lei destacou a importância dos programas de integridade corporativa como critério para a aplicação de sanções. No artigo 7°, inciso VII, está disposto:
“A existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.”
O objetivo deste dispositivo é incentivar as empresas a adotarem práticas preventivas contra a corrupção e promoverem uma cultura de integridade. Ele reconhece que organizações com sistemas estruturados para prevenir, detectar e corrigir atos ilícitos não apenas minimizam riscos, mas também contribuem mais eficazmente para investigações.
O inciso VIII menciona quatro aspectos fundamentais:
- Em primeiro lugar, a existência de “mecanismos de integridade”, ou seja, programas de compliance, que incluem políticas, controles internos e medidas para prevenir e detectar práticas ilícitas.
- Em segundo, a existência de auditorias regulares é um sinal de compromisso com a transparência e o controle interno.
- Em terceiro, incentiva que programas promovam a denúncia de irregularidades por meio de canais de denúncia seguros, confidenciais e acessíveis.
- Em quarto, a necessidade de um código de ética e conduta que oriente comportamentos esperados dentro da empresa, estabelecendo diretrizes claras para evitar práticas ilícitas.
Mais do que isso, o Decreto nº 8.420/2015 (atualizado pelo Decreto nº 11.129/2022), que regulamenta a Lei Anticorrupção, detalhou os critérios para avaliar a efetividade dos programas de integridade. Entre eles, destacam-se o comprometimento da alta direção com a integridade, treinamentos regulares sobre ética e compliance para colaboradores e terceiros, a adoção de controles internos adequados (como due diligence para fornecedores e parceiros) e a implementação de medidas de remediação para irregularidades identificadas.
Assim, a simples existência de um programa de integridade ou de um código de conduta não é suficiente. É imprescindível que eles sejam efetivamente aplicados no cotidiano das empresas, integrando-se à sua cultura organizacional e práticas operacionais.
Quais os principais impactos da Lei Anticorrupção para os Programas de Integridade?
A Lei Anticorrupção consolidou a importância dos programas de integridade no país, gerando impactos profundos no ambiente corporativo e na forma como empresas lidam com riscos éticos e legais. Embora os programas de integridade tenham origem rastreável no ambiente empresarial norte-americano desde os anos 1940, foi a promulgação dessa lei no Brasil que marcou um divisor de águas, obrigando empresas a alocarem recursos significativos para criar áreas de Compliance e implementar sistemas estruturados de integridade.
Se buscarmos o histórico de pesquisa da palavra “Integridade” no Google Trends, podemos visualizar um crescente interesse no assunto, iniciando com picos maiores em 2014 – ano de promulgação da legislação.
A Lei Anticorrupção também se tornou um marco dentro de um conjunto maior de regulamentações pró-conformidade, como a Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), que exige a adoção de mecanismos de integridade em contratações públicas. Esse movimento legislativo trouxe mudanças estruturais no ambiente empresarial, incentivando a adoção dos pilares fundamentais de compliance, como governança, auditoria, controles internos e canais de denúncia.
Além disso, a legislação fomentou o surgimento de um novo mercado de trabalho, com crescente demanda por profissionais especializados em compliance. Isso resultou em um aumento na oferta e busca por certificações, cursos e treinamentos voltados à área, consolidando a integridade como não apenas uma obrigação legal, mas também um diferencial competitivo.
No entanto, talvez o maior impacto da Lei Anticorrupção tenha sido o esforço em transformar a ética em um valor central nas empresas, promovendo a chamada cultura corporativa ética. Essa abordagem vai além do cumprimento de normas, buscando enraizar a integridade como um princípio norteador das ações empresariais. Essa transformação é vista como essencial para prevenir e remediar desvios de conduta, que são o principal objetivo dos programas de integridade.
Apesar dos avanços, tanto a legislação quanto os programas de integridade ainda enfrentam desafios, sendo fundamental garantir que essas práticas sejam integradas genuinamente à cultura organizacional, evitando que se limitem a formalidades ou ações simbólicas. Assim como a eficácia de uma lei deve ser continuamente avaliada, o impacto real dos programas de integridade em uma empresa também exige análise constante, especialmente para assegurar que a ética corporativa seja uma prática concreta e não apenas um discurso estratégico.
Como compreender o futuro dos programas de integridade?
Avaliar o futuro dos programas de integridade exige uma compreensão profunda das tendências atuais e do papel das empresas na construção de uma cultura ética duradoura. O presente é um reflexo das mudanças que estão sendo moldadas agora, e essas transformações exigem uma reflexão constante sobre o papel das organizações no fortalecimento dos princípios de integridade.
A 2ª Pesquisa Nacional sobre as Necessidades e Tendências de Compliance, realizada pela Aliant e Protiviti, entrevistou mais de 100 profissionais-chave dos setores responsáveis pelos programas de integridade nas empresas. O estudo revela que, apesar da estabilidade orçamentária, com a manutenção dos investimentos em compliance, houve uma expansão do escopo das áreas de atuação desses programas, o que gerou uma pressão adicional sobre os profissionais. Agora, eles precisam não apenas implementar ferramentas tecnológicas eficazes, mas também comunicar com clareza e convicção os benefícios das práticas de compliance para toda a organização.
Entretanto, sob uma perspectiva teórica, é crucial que os profissionais de compliance estejam atentos a armadilhas conceituais que possam comprometer a eficácia de seus programas. Referenciar marcos como a promulgação da Lei Anticorrupção em 2014 e a criação de programas de integridade não deve levar à ideia equivocada de que práticas antiéticas são um fenômeno do passado. Embora esses marcos sejam importantes, a realidade é que as práticas antiéticas ainda ocorrem no presente, em muitos casos, e precisam ser abordadas de forma contínua.
O conceito de “Políticas do Tempo”, explorado por Mudrovcic em The Politics of Time, The Politics of History: Who Are My Contemporaries?, ajuda a ilustrar essa questão. A autora sugere que, ao analisarmos o tempo, podemos cair na tentação de ver o que é atual como parte do passado (“anacrônico”) ou projetar um futuro desconectado do presente. Essa visão pode nos levar a uma percepção limitada da realidade. Mudrovcic afirma: “as distinções temporais entre presente, passado e futuro são distinções performáticas, ou seja, resultados de ações linguísticas realizadas no presente”.
Essa ideia implica que, ao tentar compreender o presente, podemos erroneamente classificá-lo como parte de um passado distante, negligenciando sua relevância e urgência. As “políticas do tempo”, portanto, são ações que, ao sancionar o que é considerado “característico” do presente, excluem o que não se alinha a essa visão, criando uma dicotomia entre o que é visto como atual e o que é considerado “anacrônico”.
Portanto, é essencial reconhecer que atos antiéticos acontecem no presente e não podem ser considerados problemas resolvidos apenas por marcos legislativos ou pela implementação de códigos de ética corporativos. A aplicação eficaz da legislação e dos programas de Compliance depende de uma fiscalização constante e de uma cultura organizacional comprometida com a integridade. Ser otimista quanto ao futuro da integridade corporativa é, de fato, ser otimista com o presente, pois é nele que a transformação realmente acontece.
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